quarta-feira, 4 de janeiro de 2017

Feliz Ano Novo (com velhas e dolorosas lembranças)


Sai ano, entra ano e muitas coisas ainda continuam mal resolvidas na minha cabeça e no meu coração. Final de ano é sempre uma época nostálgica para mim, e acredito que também para a maioria dos brasileiros que vivem no Japão e que deixaram metade dos seus laços no Brasil. Amigos, filhos, tias, tios, primos, pai, mãe... De todos, um, em especial, me toca ainda com sua presença vívida, mesmo após pouco mais de dois anos de sua partida. Até hoje, ele é uma figura controversa e, atualmente, eu, mais do que ninguém posso falar que o conheci de perto. Dedicou sua vida à pratica da caridade e isso é um dos fatos notáveis de sua história, visto que era pobre e dispunha de poucos recursos. Era alegre, brincalhão e me lembro que várias pessoas que moravam longe se dispunham a viajar algumas horas para passar uma tarde alegre com ele. Ele sempre tinha um conselho, uma palavra amiga e um riso contagiante. Confesso que o amei e o odiei muitas vezes e que tenho consciência de que, de dentro de sua ignorância e singeleza ele fez o melhor que pôde. Mas não é só porque ele morreu que vou colocá-lo num pedestal e transformá-lo em santo. Talvez um dia, eu possa escrever um livro com toda a verdade sobre a sua vida. 

No começo da década de 1970 meu padrasto fugiu com minha mãe e isso acabou por fragmentar duas famílias. Não posso julgá-los se estavam certos, ou não. Talvez fossem apenas duas pessoas fugindo em busca da felicidade. Talvez fossem duas pessoas que tiveram a coragem de assumir que se amavam e assim, se predispuseram a aceitar a chuva de pedras que a sociedade lhes infringiria. De qualquer forma, eles formaram uma nova família. Minha mãe me levou para ser parte dela. Meu padrasto levou o Fabinho e a Solange. Mais tarde nasceu o Toninho, o caçula. Nossa história daria uma novela. Talvez eu pudesse dar o título de Éramos Seis. No final das contas, todos pagaram um preço muito alto por uma felicidade que não existiu. A ex-esposa do meu padrasto ficou na rua com três crianças para cuidar, meu pai entrou em depressão, teve um derrame e morreu anos após a separação, minha mãe e meu padrasto tiveram poucos momentos de paz e tranquilidade. Quanto a nós, os filhos da nova pseudo-família, vivemos num ambiente baseado no puxa-tapetes, onde a concorrência, a mentira, a deslealdade e a pirraça eram elementos que usávamos uns contra os outros. Não bastasse viver nesse inferno, eu, o Fabinho e a Solange trabalhamos duramente, assumindo responsabilidades que hoje me assustam e que eu nunca cogitaria submeter meus filhos. A Solange já em tenra idade, uma criança que trabalhou desde os seis anos lavando, cozinhando e passando sofreu tantas imposições em sua vida, tantas limitações de liberdade que não suportou tanta humilhação dentro de casa, cometidas pela minha mãe e pelo pai dela, que acabou saindo de casa. Eu, muitas vezes, tive vontade de cometer suicídio, pois qualquer coisa era melhor do que viver naquela família opressora e protecionista. Meu padrasto mantinha um discurso de trabalho, cooperação e igualdade entre os "irmãos", mas eu, como o único que não era seu filho senti na pele o gosto amargo da discriminação e da tortura psicológica. 

O tempo passou e nós crescemos. Mentalmente, espiritualmente e psicologicamente. Quanto aos meus irmãos eu não posso falar, mas eu ainda carrego sequelas psicológicas de uma época de dureza, maus tratos e críticas ácidas de um homem que não tinha base intelectual para liderar uma família tão heterogênea. Às vezes, deito a minha cabeça no travesseiro e durmo. Minha mente me transporta para o passado e eu me vejo novamente sob o julgo dele. Já acordei várias vezes chorando e percebo então que a mágoa ainda não passou. Só adormeceu lá no fundo do meu subconsciente. Ele era um homem mau? É claro que não! Como um homem pode dedicar a vida a fazer o bem e ser mau? Prefiro acreditar que ele era apenas um homem mal esclarecido, preconceituoso, rústico e ignorante com a dura missão de sustentar uma família com quatro filhos onde eu não pertencia à sua prole. Prefiro pensar que ele me discriminou pois, de maneira involuntária não soube disfarçar o seu protecionismo para com seus filhos legítimos. 

Hoje, muitos anos depois de tudo, o Natal e o Ano Novo ainda me fazem lembrar deles. Se eu amava meus pais? A resposta é sim! Apesar de toda omissão por parte da minha mãe e apesar de toda maldade por parte do meu padrasto, eu os amava e os respeitava. Meus irmãos de criação também sofreram, de forma invertida, tudo que eu passei. Quando meu padrasto faleceu em Agosto de 2014, uma enxurrada de lembranças escapou do meu subconsciente. Entrei em depressão e tive diversos problemas na minha vida pessoal, além dos que eu já enfrentava naquela época. Perdi muitas coisas importantes (não estou falando de coisas materiais) e foram perdas irreparáveis. 

Bem, ou mal, eles foram os pais que eu tive e seguindo um preceito bíblico, sempre os honrei e os respeitei apesar de tudo. Talvez, algumas pessoas dirão que sou ingrato por revelar esse triste lado da história da minha família, mas tenho convicção de que meu padrasto não fez favor algum em ter me criado, pois como dizia um primo dele "quem quer a choca tem que cuidar dos pintinhos também" e acho que se ele queria ter a minha mãe ao lado dele, nada mais honroso do que criar o filho que ela já tinha. De certa forma, fomos uma família e, aos olhos das pessoas, parecíamos felizes, mas somente quem sobreviveu a tudo aquilo pode dizer se éramos felizes, ou não. 
Sinto a falta deles e espero em breve reencontrá-los para dar-lhes um abraço fraternal e lhes perguntar os porquês de tudo aquilo que passamos.
O que me resta agora? Socar essas lembranças nos porões do meu subconsciente, trancá-las, ser forte e seguir adiante.