VERDE,
AMARELO E VERMELHO
Depois da última eleição para presidente o Brasil estava rachado
ao meio. Os apoiadores de centro haviam sumido das discussões e a
polarização ficara mais aterradoramente crua, agressiva e até
irracional por algumas vezes. Vestido com a camisa da seleção
brasileira, Agnaldo, bolsonarista ferrenho, já havia decorado todos
os argumentos anti-esquerda que lhe vinham à cabeça. Depois do
divórcio costumava ocupar sua mente com seu negócio e nas horas
vagas criava e compartilhava posts de apoio ao governo nas
redes sociais, além de atacar qualquer manifestação de esquerda
que aparecesse em sua timeline. Trinta e oito anos, portador
de um revólver calibre trinta e oito, ele fazia a pose dos
apoiadores da revogação do estatuto do desarmamento simulando uma
arma com o dedo indicador. Acostumado com a violência de São Paulo,
sua empresa já havia sido assaltada algumas vezes. Estava se
preparando para participar de uma manifestação pró governo na
Avenida Paulista. Evidentemente ele não levaria sua arma, mas a
ideia chegou a parecer-lhe tentadora. Músculos trabalhados por anos
de maromba e língua afiada para desacatar qualquer esquerdista
cretino que lhe aparecesse pela frente. Para ele, o que importava era
lutar contra os grupos demagogos que haviam jogado o país num mar de
corrupção e numa crise que parecia irreversível. O Brasil, além
de todas as dificuldades que se multiplicavam, ainda tinha que
enfrentar a monstruosa pandemia de Corona vírus que havia infectado
o mundo inteiro e avançava numa onda gigantesca de medo, dor,
sofrimento e morte. Para Agnaldo era seu dever sair para as ruas,
mesmo com um vírus assassino entrando furtivamente pelas narinas das
pessoas. Os canos dos ônibus e metrôs, normalmente xexelentos,
ofereciam suporte para que os passageiros se agarrassem a eles
firmemente. Também haviam os botões dos elevadores, os corrimãos
das escadas rolantes e os descansos de braço dos diversos assentos
disponíveis em todos os lugares. Tudo aquilo era ambiente propício
para a contaminação silenciosa e mortífera. Nada daquilo importava
para ele, pois ele deveria atender ao chamado do “Messias”. Teria
que percorrer um longo caminho, mesmo contrariando normas óbvias de
segurança. “Fique em casa” diziam as campanhas, mas o único
homem que ousou enfrentar a corrupção e o sistema tinha o seu apoio
incondicional, mesmo que houvessem denúncias de supostos
envolvimentos de pessoas ao seu redor em esquemas de corrupção,
mesmo que ele não fosse bom com as palavras e tropeçasse nelas e
atropelasse o bom senso, mesmo que o seu discurso fosse permeado de
palavras chulas que normalmente não são usadas em discursos
formais, ainda assim, Agnaldo o carregaria nos ombros se preciso
fosse. Morador da Zona Norte, ele tinha que pegar o Metrô na
Estação Santana, fazer baldeação na linha verde e descer na
avenida mais paulista de Sampa.
Michele acordou cedo e tomou o café enquanto assistia ao noticiário
matinal. A manifestação que estava programada na Avenida Paulista
teria que ser ofuscada por movimentos de esquerda. Ficou na dúvida
sobre o que vestir e preferiu uma camiseta baby look preta em sinal
de protesto. A polarização havia chegado num nível tão alto de
rivalidade que era muito perigoso sair com alguma camiseta de apoio a
este, ou aquele partido político. A violência gratuita de Sampa não
pede motivos nem licença para te dar um soco no estômago, ou um
tiro na cara. A lei do poder paralelo da selva de pedra e concreto é
idêntica à savana africana, ou à floresta amazônica, sobrevive
quem é mais forte, ou quem sabe ler os sinais de perigo. Os
paulistanos parecem estar vivendo em constante conflito entre si,
disputando centímetro a centímetro, cada metro quadrado no trânsito
caótico das ruas. Apesar de toda a efervescência característica da
cidade, a ordem era permanecer em casa. “Stay home” diziam as
capas personalizadas de Facebook. Os ônibus e Metrôs lotados não
permitiam que se praticasse o distanciamento social. Havia um vírus
se propagando entre as pessoas, mas fora aquilo, nada havia mudado. O
mesmo empurra-empurra de todos os dias, o mesmo ar sufocante no
interior dos trens, pervertidos esfregando-se em passageiras incautas
causando constrangimento e nojo. Michele, além de toda a selvageria
que enfrentava em cada capítulo de sua agenda diária, ainda achava
tempo para ensaiar seus argumentos para desarmar extremistas de
direita. Mentalmente simulava discussões e gerava respostas
contundentes para quebrar qualquer bolsominion. A mídia falava a
todo o tempo sobre lavar as mãos, sobre o distanciamento social,
sobre o uso das máscaras e sobre ficar em casa, mas para Michele,
aquela era uma luta que não poderia ser ignorada. Era uma luta
contra o fascismo que começava a criar uma horrenda forma com
carranca e garras afiadas e ela, como patriota e brasileira acima de
tudo, tinha o dever moral de se engajar naquele movimento. Naquela
altura, não interessava se o grupo que ela apoiava tinha
supostamente saqueado os cofres públicos, ou que tivessem feito
esquemas despudoradamente promíscuos com construtoras, ou que
tivessem enviado recursos preciosos para governos ideologicamente
alinhados no exterior. Para ela, a luta contra o fascismo era a causa
de maior urgência e colocaria-se na linha de frente se preciso
fosse.
Ela
partiu da Estação Vila Madalena e seguiu até seu destino. Havia
uma grande movimentação na Estação Trianon-Masp, mas Michele não
queria chegar sob clima de tumulto e resolveu descer uma estação
adiante. Desceu na Estação Brigadeiro onde o movimento de
manifestantes era um pouco menos intenso. Alguém tocou uma vuvuzela
e ela olhou para trás num misto de susto e indignação. Trombou com
um rapaz de certa altura com braços vigorosos. Desculpe, ela disse
desconsertada procurando o rosto dele. Tudo bem, ele disse
educadamente. No exato momento em que ela percebeu aquela voz
familiar, seus olhos se cruzaram e o tempo pareceu ter parado por um
instante. Agnaldo? Perplexa, ela olhou naqueles familiares olhos de
ébano, como se estivesse tentando achar alguma coisa nas profundezas
da alma dele. Agnaldo, até ali carrancudo, sorriu um sorriso que
iluminou seu rosto instantaneamente. Nossa, quanto tempo! É mesmo,
disse ela. Aquele era um encontro inusitado e, desde que romperam uma
década atrás, nunca mais haviam se visto. Começaram a namorar no
colegial, depois foram para a faculdade e de repente, o destino os
levou para caminhos diferentes. Romper foi o caminho que acharam de
comum acordo para seguirem suas carreiras. Era um grande amor e a
separação foi dura para ambos. Michele se casou, mas o casamento
não durou muito tempo. Agnaldo também havia falhado em sua missão
de encontrar sua alma gêmea, mas o destino acabara de pregar uma
peça em ambos. Ele estava com a camisa da seleção brasileira e ela
bem sabia o que ele estava fazendo por ali. Michele estava com uma
camiseta preta e ele suspeitava que ela estava pronta para sair
gritando “fora Bolsonaro”. Ele disse que estava indo na Livraria
Cultura para namorar as novidades. Quer ir comigo? Podemos parar numa
cafeteria e colocar o papo em dia, ele convidou-a com o coração
trêmulo e ansioso por uma resposta positiva. Sua paixão por futebol
era um álibi para não falar sobre política e aquela situação
toda era muito delicada. Qualquer passo em falso e o amor de sua vida
o chamaria de “Bozo” e sumiria de sua frente para nunca mais
aparecer. Michele sentiu um calor forte no peito e na boca do
estômago. Uma sensação deliciosa de estar reacendendo uma paixão
que estava há muitos anos adormecida em seu coração. Ela não
falaria de política, pois ele poderia chamá-la de “petralha” e
sumir de sua vida novamente. Ela vivia na academia e seguindo dietas
para manter as curvas, mas a camiseta preta servia para diminuir um
pouco mais a sua silhueta. Agnaldo era o amor de sua vida e ela não
poderia arriscar deixá-lo escapar por causa de posições políticas.
Em seu íntimo, Agnaldo não concordava com alguns posicionamentos do
governo. Haviam algumas coisas que ele achava que estavam certas, mas
pela primeira vez, admitiu para si que o presidente talvez estivesse
errando em outras. Lembrou-se dos méritos dos governos anteriores e
pôs-se a refletir se havia a possibilidade de desenvolver uma linha
de pensamento onde houvesse um consenso sobre quais os melhores rumos
que a Nação deveria tomar. Michele sabia que Bolsonaro representava
o conservadorismo, a inflexibilidade de opiniões e a dureza em suas
próprias declarações, mas lá no fundo de seu senso crítico,
começou a aceitar secretamente a ideia de que ele talvez fosse o
início de uma grande mudança após anos de tentativas de reerguer o
país. Ambos, por amor, tiveram que rever suas opiniões, mas não
mais falaram de política. Cada qual guardava sua opinião para si e
perceberam que o que realmente importa não é a direita, ou a
esquerda, mas as pessoas, independentemente dos seus rótulos.
Agnaldo e Michele se casaram e vivem relativamente felizes, com os
percalços de percurso comuns a todos os casais. Depois que foram
morar no interior, sumiram do mapa, ou melhor, vivem em Ilha
comprida. Não se sabe o que fazem para sobreviver, mas acredita-se
que devem estar na beira da praia, sentindo a brisa fresca do mar,
tomando cerveja gelada, água-de-coco e comendo coxinha de mortadela,
porque para eles o amor é a coisa mais importante. Convivem bem um
com o outro, respeitando-se mutuamente sem abrir mão de seus
próprios valores.