sexta-feira, 19 de junho de 2020

Verde, Amarelo e Vermelho

Foto: banco de imagens do Google


VERDE, AMARELO E VERMELHO

Depois da última eleição para presidente o Brasil estava rachado ao meio. Os apoiadores de centro haviam sumido das discussões e a polarização ficara mais aterradoramente crua, agressiva e até irracional por algumas vezes. Vestido com a camisa da seleção brasileira, Agnaldo, bolsonarista ferrenho, já havia decorado todos os argumentos anti-esquerda que lhe vinham à cabeça. Depois do divórcio costumava ocupar sua mente com seu negócio e nas horas vagas criava e compartilhava posts de apoio ao governo nas redes sociais, além de atacar qualquer manifestação de esquerda que aparecesse em sua timeline. Trinta e oito anos, portador de um revólver calibre trinta e oito, ele fazia a pose dos apoiadores da revogação do estatuto do desarmamento simulando uma arma com o dedo indicador. Acostumado com a violência de São Paulo, sua empresa já havia sido assaltada algumas vezes. Estava se preparando para participar de uma manifestação pró governo na Avenida Paulista. Evidentemente ele não levaria sua arma, mas a ideia chegou a parecer-lhe tentadora. Músculos trabalhados por anos de maromba e língua afiada para desacatar qualquer esquerdista cretino que lhe aparecesse pela frente. Para ele, o que importava era lutar contra os grupos demagogos que haviam jogado o país num mar de corrupção e numa crise que parecia irreversível. O Brasil, além de todas as dificuldades que se multiplicavam, ainda tinha que enfrentar a monstruosa pandemia de Corona vírus que havia infectado o mundo inteiro e avançava numa onda gigantesca de medo, dor, sofrimento e morte. Para Agnaldo era seu dever sair para as ruas, mesmo com um vírus assassino entrando furtivamente pelas narinas das pessoas. Os canos dos ônibus e metrôs, normalmente xexelentos, ofereciam suporte para que os passageiros se agarrassem a eles firmemente. Também haviam os botões dos elevadores, os corrimãos das escadas rolantes e os descansos de braço dos diversos assentos disponíveis em todos os lugares. Tudo aquilo era ambiente propício para a contaminação silenciosa e mortífera. Nada daquilo importava para ele, pois ele deveria atender ao chamado do “Messias”. Teria que percorrer um longo caminho, mesmo contrariando normas óbvias de segurança. “Fique em casa” diziam as campanhas, mas o único homem que ousou enfrentar a corrupção e o sistema tinha o seu apoio incondicional, mesmo que houvessem denúncias de supostos envolvimentos de pessoas ao seu redor em esquemas de corrupção, mesmo que ele não fosse bom com as palavras e tropeçasse nelas e atropelasse o bom senso, mesmo que o seu discurso fosse permeado de palavras chulas que normalmente não são usadas em discursos formais, ainda assim, Agnaldo o carregaria nos ombros se preciso fosse. Morador da Zona Norte, ele tinha que pegar o Metrô na Estação Santana, fazer baldeação na linha verde e descer na avenida mais paulista de Sampa.
Michele acordou cedo e tomou o café enquanto assistia ao noticiário matinal. A manifestação que estava programada na Avenida Paulista teria que ser ofuscada por movimentos de esquerda. Ficou na dúvida sobre o que vestir e preferiu uma camiseta baby look preta em sinal de protesto. A polarização havia chegado num nível tão alto de rivalidade que era muito perigoso sair com alguma camiseta de apoio a este, ou aquele partido político. A violência gratuita de Sampa não pede motivos nem licença para te dar um soco no estômago, ou um tiro na cara. A lei do poder paralelo da selva de pedra e concreto é idêntica à savana africana, ou à floresta amazônica, sobrevive quem é mais forte, ou quem sabe ler os sinais de perigo. Os paulistanos parecem estar vivendo em constante conflito entre si, disputando centímetro a centímetro, cada metro quadrado no trânsito caótico das ruas. Apesar de toda a efervescência característica da cidade, a ordem era permanecer em casa. “Stay home” diziam as capas personalizadas de Facebook. Os ônibus e Metrôs lotados não permitiam que se praticasse o distanciamento social. Havia um vírus se propagando entre as pessoas, mas fora aquilo, nada havia mudado. O mesmo empurra-empurra de todos os dias, o mesmo ar sufocante no interior dos trens, pervertidos esfregando-se em passageiras incautas causando constrangimento e nojo. Michele, além de toda a selvageria que enfrentava em cada capítulo de sua agenda diária, ainda achava tempo para ensaiar seus argumentos para desarmar extremistas de direita. Mentalmente simulava discussões e gerava respostas contundentes para quebrar qualquer bolsominion. A mídia falava a todo o tempo sobre lavar as mãos, sobre o distanciamento social, sobre o uso das máscaras e sobre ficar em casa, mas para Michele, aquela era uma luta que não poderia ser ignorada. Era uma luta contra o fascismo que começava a criar uma horrenda forma com carranca e garras afiadas e ela, como patriota e brasileira acima de tudo, tinha o dever moral de se engajar naquele movimento. Naquela altura, não interessava se o grupo que ela apoiava tinha supostamente saqueado os cofres públicos, ou que tivessem feito esquemas despudoradamente promíscuos com construtoras, ou que tivessem enviado recursos preciosos para governos ideologicamente alinhados no exterior. Para ela, a luta contra o fascismo era a causa de maior urgência e colocaria-se na linha de frente se preciso fosse.
Ela partiu da Estação Vila Madalena e seguiu até seu destino. Havia uma grande movimentação na Estação Trianon-Masp, mas Michele não queria chegar sob clima de tumulto e resolveu descer uma estação adiante. Desceu na Estação Brigadeiro onde o movimento de manifestantes era um pouco menos intenso. Alguém tocou uma vuvuzela e ela olhou para trás num misto de susto e indignação. Trombou com um rapaz de certa altura com braços vigorosos. Desculpe, ela disse desconsertada procurando o rosto dele. Tudo bem, ele disse educadamente. No exato momento em que ela percebeu aquela voz familiar, seus olhos se cruzaram e o tempo pareceu ter parado por um instante. Agnaldo? Perplexa, ela olhou naqueles familiares olhos de ébano, como se estivesse tentando achar alguma coisa nas profundezas da alma dele. Agnaldo, até ali carrancudo, sorriu um sorriso que iluminou seu rosto instantaneamente. Nossa, quanto tempo! É mesmo, disse ela. Aquele era um encontro inusitado e, desde que romperam uma década atrás, nunca mais haviam se visto. Começaram a namorar no colegial, depois foram para a faculdade e de repente, o destino os levou para caminhos diferentes. Romper foi o caminho que acharam de comum acordo para seguirem suas carreiras. Era um grande amor e a separação foi dura para ambos. Michele se casou, mas o casamento não durou muito tempo. Agnaldo também havia falhado em sua missão de encontrar sua alma gêmea, mas o destino acabara de pregar uma peça em ambos. Ele estava com a camisa da seleção brasileira e ela bem sabia o que ele estava fazendo por ali. Michele estava com uma camiseta preta e ele suspeitava que ela estava pronta para sair gritando “fora Bolsonaro”. Ele disse que estava indo na Livraria Cultura para namorar as novidades. Quer ir comigo? Podemos parar numa cafeteria e colocar o papo em dia, ele convidou-a com o coração trêmulo e ansioso por uma resposta positiva. Sua paixão por futebol era um álibi para não falar sobre política e aquela situação toda era muito delicada. Qualquer passo em falso e o amor de sua vida o chamaria de “Bozo” e sumiria de sua frente para nunca mais aparecer. Michele sentiu um calor forte no peito e na boca do estômago. Uma sensação deliciosa de estar reacendendo uma paixão que estava há muitos anos adormecida em seu coração. Ela não falaria de política, pois ele poderia chamá-la de “petralha” e sumir de sua vida novamente. Ela vivia na academia e seguindo dietas para manter as curvas, mas a camiseta preta servia para diminuir um pouco mais a sua silhueta. Agnaldo era o amor de sua vida e ela não poderia arriscar deixá-lo escapar por causa de posições políticas. Em seu íntimo, Agnaldo não concordava com alguns posicionamentos do governo. Haviam algumas coisas que ele achava que estavam certas, mas pela primeira vez, admitiu para si que o presidente talvez estivesse errando em outras. Lembrou-se dos méritos dos governos anteriores e pôs-se a refletir se havia a possibilidade de desenvolver uma linha de pensamento onde houvesse um consenso sobre quais os melhores rumos que a Nação deveria tomar. Michele sabia que Bolsonaro representava o conservadorismo, a inflexibilidade de opiniões e a dureza em suas próprias declarações, mas lá no fundo de seu senso crítico, começou a aceitar secretamente a ideia de que ele talvez fosse o início de uma grande mudança após anos de tentativas de reerguer o país. Ambos, por amor, tiveram que rever suas opiniões, mas não mais falaram de política. Cada qual guardava sua opinião para si e perceberam que o que realmente importa não é a direita, ou a esquerda, mas as pessoas, independentemente dos seus rótulos.
Agnaldo e Michele se casaram e vivem relativamente felizes, com os percalços de percurso comuns a todos os casais. Depois que foram morar no interior, sumiram do mapa, ou melhor, vivem em Ilha comprida. Não se sabe o que fazem para sobreviver, mas acredita-se que devem estar na beira da praia, sentindo a brisa fresca do mar, tomando cerveja gelada, água-de-coco e comendo coxinha de mortadela, porque para eles o amor é a coisa mais importante. Convivem bem um com o outro, respeitando-se mutuamente sem abrir mão de seus próprios valores.